domingo, 28 de fevereiro de 2021

Acrópole

Eu li e sabia que era uma carta, um texto, alguma tripa de outra pessoa, mas eu sou epistolar.

Eu preciso te responder porque há anos procuro pra quem enviar cartas. Sejam em garrafas, sejam cavucadas nos tampos de madeira de mesa de bar.

Eu nem sei mais porque preciso tanto dizer alguma coisa, mas se não digo eu desmorono que é diferente de morrer. Porque ando morrendo aos borbotões, eu me acabo hoje e não é como se quisesse viver, não é o contrário. Morrer é deixar bem exposta essa saudade que eu sinto e que não é "supera porque a relação acabou".

Essa impossibilidade de ressuscitar meus mortos é um negócio que talvez eu nunca vá entender, ou vá escrever direito sobre isso, porque é o batente da porta que leva para Avalon. Só bruma quando eu penso quando quero descrever o que sinto. 

Veja, e isso também é muito sério, você nem precisa escutar ao fundo porque só tem um soluço, um negócio que parece anseio, angústia, mas é peito se partido em dois.

Fecharam a venda, aquela onde havia os doces, asfaltaram quase todas as ruas, lotearam um condomínio inteiro e alguém, algum filho da puta (que não tinha a mínima ideia do que ela significava) cortou a minha árvore de flores amarelas. 

Alguma vez eu já disse por aqui o quanto eu gosto de amarelo e nem uso, nem fica bem em mim? Eu sei que nunca te disse isso porque quase não te falei nada, mas é por conta daqueles brincos que ficavam presos nos galhos, amarelos, amarelinhos, um monte de sol misturado no verde. E imagine, eu, criança, menina talvez, ainda nova de tudo, quase tudo ainda funcionando da maneira que se espera, um coração ansiando por gente, por ventos, por ruas, dando adeus, um adeus sofrido, pequeninho, um adeus que eu nem conseguia erguer os braços pra balançar a mão, esse adeus a contragosto. Imagina só.

Por isso veja e não precisa escutar, porque eu soluçava. Lá, sentada no carro, eu vim de casa, a única que tive em toda minha vida e pra qual nunca mais vou retornar, até aqui. Até o dia de hoje, se você prestar atenção, vai ver que ainda estou sentada naquele banco, olhando ao contrário, vendo a paisagem tomar fôlego, criar distância, eu pensando que no começo, no big bang foi assim, achando que as almas gêmeas são as almas que ficaram em partes diferentes do universo em expansão e por isso a gente dói. A gente sente e como você disse hoje “fica toda esculhambada”. Eu fiquei olhando pro fim no big bang da explosão da minha vida, quando meu universo começou a se expandir e é impossível voltar pra minha galáxia, casa, terreiro, galinheiro, todos os animais mortos.

Eu morava do lado quase da casa da Cora, não era Goiás, mas era o meu Goiás velho. Era meu, me foi tirado.

E na carta não era pra dizer isso, eu preciso escrever essas coisas no papel e eu preciso dizer que preciso ser provocada. Eu preciso desse chiste, dessa sedução de alguém te jogar uma palavra, duas, uma frase até e você derrama.

Eu deveria ter sido um pote de água? Pucarinho? Pra se derramar, pra transbordar em água ao invés de gramática, pra chorar e depois secar.

Acho Leon um nome estranho, entre o certo e o errado e ando murmurando alguns porque eu gosto do som. Eu te juro, você não sabe quem, mas ainda deve ter uma caixa postal. Nunca me respondeu.

Ah, sobre aquela coisa da rachadura, de entrar luz, de deixar passar, eu criava a vida antes de ter luz, de ter coisa nenhuma, quando rachou, me achou iluminada, confusa e estarrecida, criando. Eu ando evitando criar qualquer coisa porque morrer aos borbotões, eu já disse, isso aí não é sem querer; escolhe-se morrer pra não se deixar em nada nesse mundo. 

Eu pensei que se eu me levasse toda, nada mais me machucaria. Mas a luz, a rachadura, ainda há a necessidade de fazer uma forma, de dar um sopro ao mundo. Dói, não crio, mas preciso, e sem fazer isso, sem ceder ao imaginado, eu estou sozinha no meio da Acrópole. 

Me escuta, isso aqui também é sério.

Você também não sabe, mas um termômetro se espatifou. 

Eu deveria ter escrito todas as cartas que eu sonhei.

Às vezes alguém responde ao meu sonho.